ÚLTIMA ENTREVISTA DE GUIMARÃES ROSA  

ENTREVISTA

ÚLTIMA ENTREVISTA DE GUIMARÃES ROSA 

Entrevista realizada pelo escritor e jornalista Arnaldo Saraiva, em 24 de novembro de 1966. Publicada no livro “Conversas com Escritores Brasileiros”, editora ECL em parceria com o Congresso Portugal-Brasil.

Por Mauro Leslie 

Guimarães Rosa, escritor. Imagem criada por aplicativo de “inteligência” artificial para a Revista Poliética.

Qual a linha vermelha que separa o que é literatura do que não é? O que define essa arte-ciência? No meu entendimento a arte literária traduz todas as linguagens das coisas – sentimentos, pensamentos, e ainda o que é, o que não é, o que será e o que nunca será, numa só linguagem, e nos entrega de sobressalto um vislumbre de conhecimento. Literatura é uma lanterna mágica e absurda que empresta aos seus olhos uma luz como espada penetrante e cortante, para vermos e sentirmos o mundo por paletas antes não vistas nem sentidas, e ainda brincar de cortar o escuro com seus raios, como uma criança manuseando o artefato luminoso no quintal escuro dos seus sentidos. Literatura é um saco luminoso de revelações. Claro que cada um, segundo seu grau, vai estar no patamar que lhe cabe. Não queiram que todos possam alcançar o Bóson de Higgs (e ali bater um papo com Deus) de um “Ulisses” de James Joyce. E mesmo aos que chegam às camadas mais profundas desses colóquios divinos, ainda haverá muitas variáveis que vão da superfície aos insondáveis abismos. Literatura pura é sinônimo de relíquia. E esta é algo que se torna eterno pelo valor do que a anima. O que dá vida às coisas é a alma, segundo a bíblia dos índios, dos gibis e outras religiões. Então, quando um corpo tem uma alma nobre, histórica e artisticamente, torna-se relíquia, toma proporções de santidade aos olhos cultuadores, que sabem ver, deveras, as auréolas invisíveis do objeto em questão. “Grande Sertão: Veredas” é desses livros que já nascem relíquia. A diferença da riqueza de uma obra literária para um objeto comum que se torna, também, relíquia, é que os objetos ordinários levam centenas, milhares de anos para serem elevados a esse status, e muitas vezes, sem alma, nem relíquias são; enquanto certas obras literárias jánascem relíquia. Quando Guimarães Rosa colocou o último ponto final nesse romance, pronto – fiat lux -, ele tornou-se, subitamente, uma relíquia. Nunca ouvi, nem li, nem em linguagem de fumaça, mímica ou criptografada, alguém fazer uma crítica negativa sobre essa obra-prima, Grande Sertão: Veredas, por exemplo. Enfim, o caso aqui é enaltecer não só esse livro, mas aquele que é do tamanho da sua obra, o brasileiro que se tornou universal, João Guimarães Rosa. Não vamos aqui estender os tapetes multicoloridos e esfuziantes da sua biografia e bibliografia. Estas pobres palavras, inexpressivas para definir esse semideus, é apenas para apresentar sua última entrevista. Às favas o prêmio Nobel e seus suínos suíços. Não é Guimarães Rosa que teria a honra de obter um Nobel, é o prêmio Nobel que seria honrado de ter Guimarães Rosa. Sem mais colóquios, segue a última entrevista de Rosa (e não se dê pérolas aos porcos, ainda que suíços). 

“Guimarães Rosa — Estive em Portugal três vezes. Na primeira, em 1938, passei lá apenas um dia; ia a caminho da Alemanha. Na segunda, em 1941, fiquei quinze dias, em cumprimento de uma missão diplomática que me fora confiada em Hamburgo. Na terceira, em 1942, passei um mês, pois estava já de regresso ao Brasil, por causa da guerra. 

Arnaldo Saraiva — Durante essas estadas, travou relações ou conhecimentos com alguns escritores? 

Guimarães Rosa— Não. Até porque eu ainda não era “escritor” (“Sagarana”, com efeito, só foi publicado em 1946) e o que me interessava mais era contactar com a gente do povo, entre as quais fiz algumas amizades. Gosto muito do português, sobretudo da sua integridade afetiva. O brasileiro também é gente muito boa, mas é mais superficial, é mais areia, enquanto o português é mais pedra. Eu tenho ainda uma costela portuguesa. Minha família do lado Guimarães é de Trás-os-Montes. Em Minas, o que se vê mais é a casa minhota, mas na região em que eu nasci havia uma “ilha” transmontana. 

Arnaldo Saraiva — Mas não chegou a conhecer Aquilino? 

Guimarães Rosa — Conheci Aquilino (Aquilino Ribeiro), mas, acidentalmente. Eu entrei numa livraria, não sei qual, do Chiado (presumo que a Bertrand) e, quando pedi alguns livros dele, o empregado perguntou-me se eu queria conhecê-lo, pois estava ali mesmo. Respondi que sim, e desse modo obtive dois ou três autógrafos de Aquilino, com quem conversei alguns instantes. Voltei a estar com ele, mais tarde, num jantar que lhe foi oferecido quando de sua vinda ao Brasil. Mas ele, naturalmente, não se recordava de mim (porque eu não me apresentara como escritor), e eu também não lhe falei do assunto. 

Arnaldo Saraiva — Não sabe que, justamente, numa crônica motivada pela sua ida ao Brasil, Aquilino colocou o seu nome, logo em 1952, ao lado dos de José Lins do Rego, Gilberto Freyre, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, Jorge de Lima e Agripino Grieco, que, segundo ele, eram os “notáveis escritores e poetas” que estavam a “encostar a pena contra a lava” que ia no Brasil “sepultando prosódia e morfologia da língua-mater”? Eu creio mesmo que é essa uma das primeiras referências ao seu nome em Portugal… 

Guimarães Rosa — Não sabia dessa curiosa referência do Aquilino. Antes dessa, porém, há uma referência a mim numa publicação do Consulado do Porto, de 1947, feita por não sei quem. Sei de outra referência feita, anos depois, salvo erro, por um irmão de José Osório de Oliveira. 

Arnaldo Saraiva — Voltando a Aquilino: acha que recebeu alguma influência dele? Já, pelo menos, um crítico, o mineiro Fábio Lucas, notou alguns “pontos de contato nada desprezáveis” entre a sua obra e a de Aquilino. 

Guimarães Rosa — Eu gosto de Aquilino, sobretudo da “Aventura Maravilhosa”, mas não creio que dele tenha recebido alguma influência, a não ser na medida em que sou influenciado por tudo o que leio. A verdade é que, antes de 1941, só conhecia de Aquilino um ou dois trechos, como infelizmente ainda hoje sucede em relação à quase totalidade dos escritores portugueses vivos. E, como sabe, “Sagarana”, foi escrito em 1937. 

Um garçom do Itamaraty entra com um copo de água e pergunta se precisa mais alguma coisa. Guimarães Rosa agradece e diz: Vá com Deus, como se fosse um beirão ou um transmontano.

Arnaldo Saraiva — Mais uma razão, portanto, para eu prosseguir: Como encara ou explica o enorme prestígio de que goza nos meios intelectuais e universitários portugueses? 

Guimarães Rosa — Em relação a mim, houve por aqui (no Brasil) muitos equívocos, que ainda hoje não desapareceram de todo e que, curiosamente, ao que parece, não houve em Portugal. Pensaram alguns que eu inventava palavras a meu bel-prazer ou que pretendia fazer simples erudição. Ora, o que sucede é que eu me limitei a explorar as virtualidades da língua, tal como era falada e entendida em Minas, região que teve durante muitos anos ligação direta com Portugal, o que explica as suas tendências arcaizantes para lá do vocabulário muito concreto e reduzido. Talvez por isso que ainda hoje eu tenha verdadeira paixão pelos autores portugueses antigos. Uma das coisas que eu queria fazer era editar uma antologia de alguns deles (as antologias que existem não são feitas, como regra, segundo o gosto moderno), como Fernão Mendes Pinto, em quem ainda há tempos fui descobrir, com grande surpresa, uma palavra que uso no “Grande Sertão”: amouco. E vou dizer-lhe uma coisa que nunca disse a ninguém: o que mais me influenciou, talvez, o que me deu coragem para escrever foi a “História Trágico-Marítima” (coleção de relatos e notícias de naufrágios, acontecidos aos navegadores portugueses, reunidos por Bernardo Gomes de Brito e publicados em 1735). Já vê, por aqui, que as minhas “raízes” estão em Portugal e que, ao contrário do que possa parecer, não é grande a distância “linguística” que me separa dos portugueses. 

Arnaldo Saravia — Eu penso até que na imediata e incondicional adesão portuguesa a Guimarães Rosa há muito de transferência sublimada de uma frustração linguística nossa, coletiva, que vem pelo menos desde Eça. Mas não nos desviemos. Admira-me muito que não tenha citado nenhum livro de cavalaria, nem nenhuma novela bucólica, pois pensava que deles e delas havia diversas ressonâncias na sua obra, sobretudo no “Grande Sertão: Veredas”… 

Guimarães Rosa — Sim, li muitos livros de cavalaria quando era menino, e, por volta dos 14 anos, entusiasmei-me com Bernardim (Bernardim Ribeiro), e depois até com Camilo. Ainda continuo a gostar de Camilo, mas quem releio permanentemente é Eça de Queiroz (quando tenho uma gripe, faz mesmo parte da convalescença ler “Os Maias”; este ano já reli quase todo “O Crime do Padre Amaro” e parte da “Ilustre Casa de Ramires”). Camilo, leio-o como quem vai visitar o avô; Eça, leio-o como quem vai visitar a amante. Quando fui a Portugal pela primeira vez, eu só queria comidas ecianas (que gostosura, aquele jantar da Quinta de Tormes). Aliás, deixe-me que lhe diga que me torno muito materialista quando penso em Portugal; penso logo nos bons vinhos, nas excelentes comidas que há por lá. E talvez seja também por isso que se há um país a que eu gostaria de voltar é Portugal… 

Arnaldo Saraiva — … Que, naturalmente, o receberá de braços abertos, em festa. Mas permita-me ainda uma pergunta: como “enveredou” – e penso que a palavra se ajusta bem ao seu caso – pelo campo da “invenção linguística”? 

Guimarães Rosa — Quando escrevo, não penso na literatura: penso em capturar coisas vivas. Foi a necessidade de capturar coisas vivas, junto à minha repulsa física pelo lugar-comum (e o lugar-comum nunca se confunde com a simplicidade), que me levou à outra necessidade íntima de enriquecer e embelezar a língua, tornando-a mais plástica, mais flexível, mais viva. Daí que eu não tenha nenhum processo em relação à criação linguística: eu quero aproveitar tudo o que há de bom na língua portuguesa, seja do Brasil, seja de Portugal, de Angola ou Moçambique, e até de outras línguas: pela mesma razão, recorro tanto às esferas populares como às eruditas, tanto à cidade como ao campo. Se certas palavras belíssimas como “gramado”, “aloprar”, pertencem à gíria brasileira, ou como “malga”, “azinhaga”, “azenha”, só correm em Portugal, será essa razão suficiente para que eu não as empregue, no devido contexto? Porque eu nunca substituo as palavras a esmo. Há muitas palavras que rejeito por inexpressivas, e isso é o que me leva a buscar ou a criar outras. E faço-o sempre com o maior respeito, e com alma. Respeito muito a língua. Escrever, para mim, é como um ato religioso. Tenho montes de cadernos com relações de palavras, de expressões. Acompanhei muitas boiadas, a cavalo, e levei sempre um caderninho e um lápis preso ao bolso da camisa, para anotar tudo o que de bom fosse ouvido – até o cantar de pássaros. Talvez o meu trabalho seja um pouco arbitrário, mas se pegar, pegou. A verdade é que a tarefa que me impus não pode ser realizada só por mim. 

Guimarães Rosa vai buscar uma fotografia para me mostrar onde levava o caderninho de notas, nas boiadas: vai buscar uma pasta com a correspondência com um seu tradutor norte-americano, para me mostrar as dúvidas e dificuldades deste, e o trabalho, a seriedade e a minúcia com que as vai resolvendo uma por uma (escrevendo, ele próprio, preciosas autoanálises estilísticas ou considerações filológicas). E, entretanto, vai-me fazendo outras confissões interessantes. Por exemplo: “Gosto das traduções que filtram. Da tradução italiana do Corpo de Baile gosto mais do que do original.” Ou: “Estou cheio de coisas para escrever, mas o tempo é pouco, o trabalho é lento, lambido, e a saúde também não é muita.” Ou ainda: “Não faço vida literária: como regra, saio daqui e vou para casa, onde trabalho até tarde.” Ou: “No próximo ano, vou publicar um livro ainda sem título, com 40 estórias” (que têm aparecido, quinzenalmente, no jornal dos médicos, “O Pulso”, onde frequentemente aparecem também cartas ou a atacá-lo ou a defendê-lo ferozmente). Ou ainda: “Eu não gosto de dar, nem dou entrevistas. Tenho sempre a sensação de que não disse o que queria dizer, ou que disse mal o que disse, ou que criei maior confusão; e não estou assim tão seguro do que procuro e do que quero. Com você abri uma exceção…”.”

Nossos textos representam, exclusivamente, as ideias e opiniões dos idealizadores da Poliética.

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