ASAS ARREPENDIDAS DE SATURNO 

Asas Arrependidas de Saturno 

Por Mauro Leslie

Pierre Mignard, O tempo corta as asas do cupido, 1694. Pintura óleo sobre tela; 66 x 54 cm.

O deus do tempo cortando as asas do deus do amor. Saturno (Cronos) amputando o voo do Cupido (Eros).

Para alguns, a pintura do francês Pierre Mignard (1610-1695), retrata uma crueldade sem medidas. O velho Tempo, com suas asas bem vívidas e barbas compridas de anos, corta o voo do Cupido menino, representado por um anjo bebê, puro e indefeso.  

 O que nos diz essa pintura magistral? Uma castração ressentida e impiedosa? A frieza e rancor de Saturno num ato de censura que nos sangra a alma? Ou a razão dominante, fria e sábia, assenhorando-se dos seus instintos? Seria o Cupido apenas o adolescente interno de Saturno, enquanto este corta seus impulsos?  

Para outros a interpretação diz que o tempo derrota o amor. Todo  amor é consumido com o tempo?   

Quem sabe, Eros, que se casou com Psykhé e, atormentado por sua amada, a Deusa da Alma, por ter a alma domada por ela, saiu por aí a escravizar as almas das pessoas com flechadas alucinógenas, pois não é o belo anjinho de asas um alienador de corações? Quis Saturno amputar suas asas para não ser por ele flechado?  

Há os que entendem Eros como o amor passional. Paixão, química e desejos incontroláveis. E que a razão (Saturno) deve controlar a paixão (Eros). O eu superior — individualidade e espírito—, dominado pelo eu inferior, a personalidade,  carne ou matéria. São Jorge dominando o dragão: arcano onze – a força doce e delicada da mulher dominando, sem esforços, o bravio e feroz leão.  Vamos levar em conta que Saturno, na astrologia, é, também, castigo, rigor.  

 As asas arrependidas de Saturno.

O que o autor quis nos passar com Saturno representado com asas? Ora, na mitologia o deus Cronos não tem asas. Como a dizer: Vou cortar isso enquanto está pequeno, porque ninguém pode com elas depois que crescem. 

Para a intepretação e sentimentos de outros, Saturno, depois de ter experimentado as asas por eternidades sem conta – e as asas representam a liberdade de amar (Cupido) -, chegou à conclusão de que se entregar ao amor não é bom. Então, num ato de amor e ódio, ele decepa a possibilidade de alguém passar pelo que ele passou com as malditas asas, cortando o voo de quem dá asas à ilusão do amor.  

 A inspiração de Pierre Mignard pode, simplesmente, representar o domínio da mente sobre as sensações. A sabedoria ensinando os instintos.  

Os amargos, vencidos e rejeitados pelos amores traídos, negados, não correspondidos, diriam: Se eu pudesse ter feito isso antes de me apaixonar, não teria chegado aos abismos em que me encontro.  

Os enamorados e crentes no amor, dirão: Que crueldade sem medidas, vestida de carrasco, que coisa clerical, medieval, a inveja imantada com as asas do recalque corta a liberdade.  

Na pintura, Eros aparece sem sua costumeira armadura, ou seja, indefeso, nu e completamente puro, inocente, criança, na penugem, ainda por voar. Saturno, por sua vez, com sua foice ao chão, demostrando sua imponência bélica, soberano e certo de que aquilo é o melhor a se fazer. Com as pernas segurando, amarrando a mobilidade de Eros, seu olhar nos diz: “Isso não presta”, no momento em que decepa. E demonstra como se cortam as asas de um pássaro para que não tenha a liberdade de cumprir o seu destino, de voar terras, montes, planícies e rios, escolher seus grãos, pares e ninhos. Amargurado e frustrado, o Ancião do Tempo parece nos dizer: “Se não pude, ninguém mais pode”. Ou, quem sabe: “Não quero que ninguém passe pelo que eu passei”. Talvez, ainda: “Eu não acredito nisso, é ilusão!” 

Quem sabe, o próprio autor mais velho, com suas decepções amorosas, pensando no que deveria ter feito, se pudesse, lá nos primórdios, quando Eros começou a morder seus sentidos e se apaixonou.  

 O olhar de Saturno, de cima pra baixo, suas armas imponentes, as cores frias e tristes preponderando, deixam claro a desilusão amorosa do artista, e isto de fato aconteceu com Pierre Mignard: antes de pintar esse quadro ele teve um romance frustrado. Seria essa a inspiração para a Obra?  

Não creio que a pintura signifique que o tempo vence o amor, como quer a maioria dos intérpretes da internet. Apesar que as leituras das obras de arte são (quase) livres, cada um vai entender segundo seu estado de alma. Há quem veja até sensualismos nesse quadro. Se Pierre Mignard sofreu uma decepção amorosa, provavelmente, esse quadro pode retratar seu estado de espírito. Mas isso não tira a beleza plástica, muito menos a reflexão proposta pela obra. Os artistas e escreventes de orações e poemas podem não estar nos seus melhores dias, mas, inspirados, sempre vão dizer além das coisas que imaginavam estar dizendo, e quando não, nós nos ocupamos de imaginar por eles.  

Todavia, serve para reflexão quanto à castração, mas, também, sobre o domínio de si mesmo. O que Saturno corta, se a paixão e o amor, o controle e descontrole, liberdade e prisão, se livre-arbítrio e proibição, perda e nascimento da fé, amor e ódio. Todo quadro plástico é um espelho: o que se vê ou como você se vê? 

Comumente, as pessoas confundem desejo sexual e paixão com amor; ciúme e egoísmo com amor; carne com espírito. Existe a decepção de quem enjaula sua alma numa prisão sem muros, por conta de uma desilusão amorosa, e passa uma vida inteira amargurado nas próprias desesperanças, censurado e censurando; ou se viciam em drogas menores como o álcool, a gula, o abandono de si mesmo, ao ponto de se tornar um mendigo, um errante, e outras dificuldades mais.  

Na realidade, as grandes obras de arte têm o poder de transcender os motes dos artistas.  Para alguns, o quadro de Pierre Mignard, o corte e as asas, pode significar tudo que foi dito neste texto, em fases diferentes da sua vida. Por exemplo, a uma menina invadida pelos hormônios da juventude, e que é censurada pelos pais, a sociedade ou por ela mesma. Em qualquer dos casos, esse Saturno decepador, impedindo-a de viver tudo que sente, pode representar o velho tempo com sua foice ceifadora. Por outro lado, a esta mesma adolescente, já senhora, casada, com filhos e um marido que ama e divide um compromisso de monogamia, o quadro pode representar ela mesma (o seu Saturno) cortando as asas dos seus ímpetos por outro amor.  Seria como se a sua consciência vivida, portanto, mais fria e sã, domasse as asas dos seus instintos de mulher sensual, em favor de um projeto, de uma família, em defesa de um amor que escolheu vivenciar com o marido.  

Todos que já se sentiram podados e impedidos, vão se identificar com esse quadro. Bem como todos que sentiram a necessidade de censurarem-se em nome de um bom juízo, do equilíbrio ou respeito, também se verão na pintura.  

Há os que amam com a barriga dos instintos; há os que o fazem com as devoções do coração; há os que amam à luz da mente. Que tipo de amor é ou foram os seus? Em quais deles, em algum momento, se você pudesse ser o seu Saturno contra o seu Cupido, cortaria as penas do seu pássaro em voo? Quando você deixaria as penas e até as asas crescerem? 

Só quem não teve um amor proibido, impedido. Quem não se entregou cega e totalmente desarmado a outra pessoa. Só quem já perdeu várias batalhas contra os próprios instintos, quem não pode voar ou voou demais, vai entender e sentir essa pintura na alma.  

Nossos textos representam, exclusivamente, as ideias e opiniões dos idealizadores da Poliética.

Compartilhe este post

Deixe um comentário

Se você não é membro e quer conhecer nosso curso introdutório de Iniciação Peregrino clique no botão abaixo.