A MORTE DE IVAN ILITCH

A MORTE DE IVAN ILITCH

Um dos 10 melhores livros da literatura universal

Por Mauro Leslie

Capa do livro “A Morte de Ivan Ilitch” do escritor Liev Tolstói, pela Editora Camelot.

“A Morte de Ivan Ilitch” não foi escrito por Liev Tolstói no ano da sua morte, aos 82 anos. Mas bem que poderia. Fora antes dos seus 50, e nos anos que se seguem, mergulhado, pode-se dizer, na crise porque passara o seu personagem e a própria essência do livro que escrevera, ele passa por uma mudança de paradigma, vive algo semelhante à morte. De certa forma ele morre mesmo ou renasce para outra espécie de vida, outro relacionamento com ela. Como se nos estertores do ser, nessa fase da vida, seus modelos conceituais de existência transformam-se radicalmente.

Tolstói se desencanta da igreja e do casamento religioso. Mergulha em questionamentos sobre os valores materiais e seus fins. O escritor se rendeu à mais pura filosofia budista sobre o desapego – sem ser budista -, como se atendesse a uma espécie de chamamento. Aquele que é, talvez, o homem mais importante da história da Rússia, dali em diante se isolaria num mosteiro interno em busca de si mesmo e fugindo dos outros.

A descontento da família, feito um eremita do arcano 9, negligencia o pão material para viver do pão espiritual. Desiste dos direitos autorais e quer se desfazer das riquezas. Passa a se vestir e a viver como um simples camponês despojado de tudo. O que o inspirou a escrever tal obra parece ter mexido com o autor mais do que poderia ele supor. Feito uma semente, a essência do livro rompe a casca e se ergue qual uma árvore na vida real do próprio autor. E isso, de fato, consuma-se ao final da sua vida em Astapovo, em 1910.

Mas foi aos 50 anos que o gênio russo se recolheu. Começava o processo à procura das luzes de como saber desligar-se.. Reavaliou a morte, a vida e seus objetivos. Pode-se dizer que esse livro foi uma espécie de suspiro existencial, prenúncio de como se amadurece um canto de cisne.

A vida e morte de Ivan Ilitch parece representar os próprios pensamentos existenciais de Tolstói quanto à vida familiar, profissional e social, a verdade pura e desavergonhada dos sentimentos que os seres humanos têm um pelo outro na vida, e depois da vida. O livro traz uma profunda reflexão sobre os valores fugazes que a maioria dos vivos adotam entre si.

As virtudes que trocamos uns com os outros, não são, a bem da verdade, virtudes, e não passam de falsidades e interesses escusos. Feito o criador de porcos que ama suas crias, as alimenta com o melhor que tem, zela e defende para um único fim: abater e alimentar-se dela.

Eu amo o que você oferece para o meu prazer, eu amo o que você me proporciona, e quando não pode mais me dar prazer será como um manjar que não se pode mais comer, ou porque acabou ou, simplesmente, porque não quero mais. Feito um aparelho eletrônico que estragou sem mais conserto, feito um sapato velho que não mais serve, você não me interessa, não o amo mais, é agora objeto de descarte.

Tolstói, nosso Himalaia da literatura, no dobrar dos horizontes da sua vida, quando seu espelho mais íntimo lhe revelava, definitivamente, que tudo é egoísmo e a relação entre as pessoas é mera troca de superficialidade selvagem, escreve “A Morte de Ivan Ilitch”.

Quando li esse livro pela primeira vez, confesso que me deu uma tristeza daquelas de fim do dia, quando a noite vai tomando conta e o crepúsculo engole pouco a pouco as últimas luzes que restam e de repente bate na gente uma sensação de fim, uma desesperança. Sentir que o dia está acabando e uma culpa ou vazio o peito da gente vai abarcando. A sensação de que o tempo está se esvaindo, que o dia não foi suficiente, ou que traímos aos outros e, principalmente, a nós mesmos.

A morte, seja de um dia ou de uma vida inteira, é mesmo dolorida, e é nessa hora que nos vestimos, quase sempre, de frustrações, decepção, incertezas e muita vontade de voltar no tempo e sair catando o que se negligenciou, o que não se fez, afastar os exageros, escolher outras escolhas, ver o que de bom deixou de se ver. Olhar os filhos como filhos, os pais como tais e Deus como verdadeiramente Deus.

Os homens vivem de efêmeros prazeres oferecidos por outros seres escolhidos e recolhidos por ele mesmo, para deles se alimentarem. Que daqui a alguns anos da morte de marias e josés ninguém mais contará onde era o lugar deles.

“A Morte de Ivan Ilitch” foi publicado pela primeira vez em 1886, quando os anos e a sua vida já estavam engelhados, e depois dele passar por uma grave crise com traços de depressão. Um tanto desesperançoso, somando-se a isso a sua vida de excessos e frivolidades, àquela altura pautado pela absoluta negação dos bens materiais, ele mergulha nessa obra clássica. Uma novela sobre a vida experienciada e os contrastes entre o pragmático e o metafísico de vivê-la.

O que é a vida e a morte, e como nossa cultura as recebe e pratica? Viver para quê? Qual o real objetivo da vida, como, por que e por quem vivê-la?

Na novela, Ivan é um modelo dos padrões aceitos e exemplares da vida de um cidadão bem-sucedido. Profissionalmente realizado, bons relacionamentos, influente e notório na vida pública. Casamento, filhos e amigos, tudo nos trilhos para um bom moço à sua época. Para ele e a sociedade, em geral, aquilo era felicidade, modelo de decência e sucesso. Dentro de casa, uma esposa egoísta e alheia a qualquer coisa que não fosse alimentar as entranhas do bel-prazer. Certo dia, quando se dedicava a decorar a casa, para felicidade e encanto dele e da esposa, ele cai e se fere na região do rim. A partir dali, começa a morrer Ivan Ilitch. Doravante, Ivan adoece e para de trabalhar, pois a dor o acomete e o debilita demasiadamente. Recluso em casa, na busca da causa de sua enfermidade.

Vítima da cultura preconceituosa em que vivia e acreditava, sente-se envergonhado e igualmente envergonha a família, pois, ficar em casa e não trabalhar era vexatório, socialmente condenável. Como algo contagioso, eles escondem Ivan dos olhos alheios. Médicos vêm e vão, de tudo tentam, mas não havia medicina que desse conta. Sua esposa, os filhos, os amigos e a sociedade, vão deixando derreter as máscaras tergiversadas dos verdadeiros humanos por trás dos atores dissimulados. E Ivan vai percebendo o quão desimportante ele próprio é para a família, os filhos e os amigos. E que a profissão e todos os títulos dos quais se vestem e se servem os civis não servem pra nada agora.

No fundo nos dá uma pontada de dor em ver que todos iremos significar nada, também, algum dia e depois para sempre. Ressalte-se que, na vida real, Liev Tolstói, quando se retirou às montanhas internas do eremitismo, a contragosto e até amarfanhado e condenado pela família por sua decisão de desapego material, a única pessoa que dele não se afastou foi sua filha caçula e a quem ele deixou toda sua herança e direitos autorais, Aleksandra.

O Russia Beyond (https://br.rbth.com/) é um projeto multimídia internacional de organização independente e sem fins lucrativos, multilíngue russo operado pela RT, uma rede internacional de televisão de notícias controlada e financiada pelo Estado russo e que se propõe a ser a principal fonte de informações sobre os diversos aspectos da vida russa, como cultura, viagens, educação, aprendizado do idioma e maneiras de fazer negócios no país. Todavia, o que nos interessa é o excelente texto publicado em seu site em 20 de novembro de 2020, intitulado “Os Últimos Dias de Levi Tolstói”, e que transcrevemos abaixo, e com o qual finalizamos nossa conversa (link da publicação original ao final desta matéria).

Os últimos dias de Lev Tolstói

Por ALEKSANDRA GÚZEVA

Vladímir Tchertkov / Museu Estatal Lev Tolstói; Russia Beyond.

Dez dias antes de sua morte, Tolstói, aos de 82 anos de idade, fugiu de casa e se escondeu da mulher. Explicamos esses conturbados dias do conde mais genial da literatura mundial aqui!

Em 20 de novembro de 1910, morria um dos principais escritores da Rússia. A excêntrica fuga noturna desse senhor de anos de sua propriedade, em Iásnaia Poliana, a sul de Moscou, transformou-se em uma história de detetive que reportada ativamente pela imprensa. E o país inteiro acompanhou seus últimos dias.

Por muitos anos, o exemplar homem de família Lev Tolstói discorreu sobre a importância dos valores familiares. O amor, o casamento e os filhos eram, para ele, o sentido da vida, juntamente com o contínuo aperfeiçoamento espiritual.

Porém, na década de 1880, quando fez 50 anos, ele viveu uma poderosa transformação interior. O escritor ficou desiludido com a Igreja e com o casamento como uma união sagrada. Sua atitude em relação à propriedade privada também mudou e ele buscava se livrar de sua riqueza, começou a se vestir com camisas de camponês, que passaram a ser sua marca registrada, e foi para trabalhar nos campos junto com os camponeses.

Além disso, ele decidiu rejeitar os direitos autorais de suas obras, o que gerou um escândalo na família. A mulher de Tolstói, Sofia Andreievna, foi totalmente contra suas decisões, já que isso deixaria a família sem meios e os muitos filhos de Tolstói sem herança.

Lev e Sofia nos 48 anos de casamento.
Valentin Bulgakov / Museu Estatal Lev Tolstói.

Nesses acessos, Tolstói contava com o apoio de seu fã e assistente pessoal Vladímir Tchertkov. Ele mesmo sugeriu que o escritor deixasse a família, já que ela não entendia sua nova filosofia. Tchertkov tornou-se um ser incondicionalmente irritante para Sofia. O clima na família tornou-se tenso e surgiam frequentemente conflitos entre os cônjuges.

“Hoje ele gritou alto que seu desejo mais fervoroso é deixar a família”, escreveu Sofia Andreievna em seu diário em meados de 1882. Uma semana depois, ocorreu outro conflito quando a mulher acusou Tolstói de ser irresponsável quanto ao dinheiro da família e ele saiu de casa apenas com um saco.

Tchertkov e Tolstói.
Tomas Tapsel / Museu Estatal Lev Tolstói.

“No meio do caminho para Tula [cidade mais próxima de sua propriedade, em Iásnaia Poliana], ele voltou porque a mulher estava perto de dar à luz. No dia seguinte, sua filha mais nova, Aleksandra, nasceu”, escreveu Andrêi Zorin em sua biografia de Lev Tolstói. Mais tarde, Aleksandra seria secretária pessoal, amiga dedicada e assistente do pai. Ele legou a ela todos os direitos de suas obras.

Doze anos depois, Tolstói queria novamente ir embora e chegou até a escrever uma carta de despedida para Sofia: “Até agora não pude te deixar, achando que privaria meus filhos, enquanto ainda eram pequenos, da pequena influência que deria ter sobre eles”. Mas ele nunca entregou a carta e continuou em casa.

Tolstói com o médico da família.
Sputnik.

Mais tarde, Tolstói recusou o Prêmio Nobel de Literatura quando sua nomeação ainda era apenas um rumor. Ele também fez todo o possível para evitar uma grande comemoração de seu 80º aniversário em 1908.

Fugado “paraíso”

Na noite de 10 de novembro de 1910, Tolstói fugiu escondido, levando apenas poucos pertences. Ele estava acompanhado por seu médico pessoal, Makovitski, acordado repentinamente no meio da noite e que não suspeitava das intenções de Tolstói. Pela manhã, a filha de Aleksandra deu à mãe uma carta na qual Tolstói anunciava que estava indo embora para sempre. “Faço o que os velhos da minha idade costumam fazer. Eles deixam a vida mundana para viver seus dias finais na solidão e no silêncio”, escreveu Tolstói.

Sofia estava desesperada: Tolstói já tinha desmaios, lapsos de memória e problemas cardíacos. A fuga poderia levar a sua morte.

Tolstói e seu médico pegaram um trem para a cidade mais próxima, Tula. O biógrafo Pavel Bassínski escreve que o próprio Tolstoi não sabia sua rota ou destino: “… ele não só não sabia, como fazia de tudo para não pensar nisso”.

A imprensa local logo ficou sabendo da atitude excêntrica de Tolstói e repórteres de Tula começaram a seguir o escritor e publicar relatos passo a passo de sua movimentação. “Em Beliov, Lev Nikoláevitch [Tolstói] foi a um café e comeu ovos fritos.”

Tolstói fez uma rota tortuosa, trocando várias vezes de trem, e acabou chegando ao mosteiro Chamordino, onde sua irmã morava, e depois disso decidiu partir para o sul, para a Bulgária. Mas, no caminho, o escritor pegou um resfriado, que levou a uma pneumonia. Seu médico decidiu tirar o paciente do trem na estação seguinte.

Sofia mandou um telegragrama: “Lev Nikolaevitch em Astapov com chefe da estação. Febre 40 graus.”

Estação Astapovo, o último refúgio

Estação Astapovo.
TASS.

Hoje, esta pequena estação de trem na região de Lipetsk chama-se “Lev Tolstói”. Em 1910, a atenção de todo o país estava voltada a Astapovo. Em 13 de novembro, poucos dias depois de sair de casa, Tolstói, gravemente doente, foi levado para a casa do chefe da estação, o local mais confortável disponível. O escritor estava praticamente inconsciente e com falta de ar. Diversos médicos tentaram salvá-lo, mas ele pediu que não o incomodassem e que tinha “se submetido à vontade de Deus”.

A saúde de Tolstói era motivo de preocupação nos patamares mais elevados do país e até mesmo funcionários públicos da capital convocavam reuniões, enquanto governadores dos arredores, funcionários dos ministérios dos negócios internos e a diretoria ferroviária incumbiam a polícia local e os funcionários das estações a relatar sobre a saúde do escritor com a maior frequência possível.

Multidão acompanha corpo de Tolstói em Astapovo em 1910.
Domínio público.

Link da publicação original: https://br.rbth.com/historia/84669-os-ultimos-dias-de-tolstoi – acessado em 7 de março de 2024.

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