CORA CORALINA

CORA CORALINA, A POESIA COMPLETA 134, DE GOIÁS PARA O BRASIL E MUNDO  

Por Mauro Leslie

Poetisa e contista brasileira, goiana da cidade de Goiás Velho, da casa da ponte à beira do Rio Vermelho, donde cantam os pássaros e as lavadeiras de roupas, lá onde correm as veias de dentro do Brasil profundo.

Faz 38 anos que Cora Coralina deu por encerrada sua existência nessa vida, seu corpo passou, sua poesia se eterniza. Nascida a 20 de agosto de 1889 e, segundo a descrição de Guimarães Rosa para a morte, tornou-se encantada em 10 abril de 1985. 

Quando descobriu Cora Coralina, Carlos Drummond de Andrade, encantado, mas, mais vivo do que nunca, em sua crônica no Caderno B, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, num sábado, 27 de dezembro de 1980, pág, 07, escreveu:   

“Cora Coralina, para mim, é a pessoa mais importante de Goiás. Mais que o Governador, as excelências parlamentares, os homens ricos e influentes do Estado. Entretanto, uma velhinha sem posses, rica apenas de sua poesia, de sua invenção, e identificada com a vida como é, por exemplo, uma estrada.  Na estrada que é Cora Coralina passam o Brasil velho e o atual, passam as crianças e os miseráveis de hoje. O verso é simples, mas abrange a realidade vária.” 

Nascida e batizada duas vezes: a primeira, de pai e mãe e batismo, chamou-se Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas. A segunda, nascida dela mesma,  capacidade essa que os poetas têm de promover em si o fenômeno da cissiparidade, ela que já era Aninha se batiza Cora Coralina, e renasce poetisa e contista brasileira, goiana da cidade de Goiás Velho, da casa da ponte à beira do Rio Vermelho, donde cantam os pássaros e as lavadeiras de roupas, lá onde correm as veias de dentro do Brasil profundo.  

Apareceu pelo espanto de Carlos Drummond. Desde então, jornais, revistas e televisão chegam para o interior de Goiás. Feito discos-voadores ou pessoas de outro planeta, aparecem de todo lugar, para visitarem a alquimista dos doces e poetisa das pedras. À velha e pequena cidadezinha vem gentes de todos os lados conhecê-la, entrevistá-la.  

De repente, a velha Aninha da casa da ponte era capa das principais revistas do país, dando entrevistas e recitando, apaixonada e fervorosamente, seus versos empalhados da sua voz forte e antiga. A beleza plástica da presença de Cora Coralina, sua poesia lírica e terrosa, encantaram e deixaram admirados a todos.

Museu Casa de Cora Coralina, inaugurado em 20 de agosto de 1989, data comemorativa dos 100 anos da poeta.

“Eu venho do século passado…”

(…) Creio numa força imanente/ que vai ligando a família humana/ numa corrente luminosa/ de fraternidade universal”.  

Com o dedo de Júpiter em rixe, olhos expressando mistério e sabedoria, como se os velhos crianças fossem, ou como uma criança velha e sábia na sua pureza, e falassem por aquelas mãos, por aquele rosto. Ela declamava em sotaque e língua goiana, um português puro de brasilidade. Aos oitenta anos, diante dos microfones da imprensa, o seu verbo era derramado dos becos do interior de Goiás para o Brasil, seus versos eram debulhados do estreito azul da sua garganta, por ela falavam todas as gentes das estirpes do milho que ela tanto cantara.   

Aos 14 anos, talvez ela soubesse, e os poetas sempre sabem do futuro, que quando chegassem as glórias do reconhecimento, seria melhor que ela se chamasse Cora Coralina, conta ela: 

Comecei a escrever aos 14 anos, numa idade em que não tinha leitura, não tinha cultura e não tinha vivência. Mal tinha deixado a escola primária. Mas eu me enchia de muita vaidade e para escrever me servia apenas do meu imaginário, nada mais. (…) me chamo Anna e, sendo Sant’Ana (Cidade de Goiás, hoje Goiás Velho) a padroeira da cidade, tinha muita Ana naquele tempo e eu tinha medo que a minha glória literária fosse atribuída a outra Ana. Procurei, então, um nome que na cidade eu não tivesse xará, achei Cora. Cora só não chegava, encontrei Coralina. Juntei os dois e hoje me identifico.

Seu primeiro livro foi publicado próximo dos seus incríveis 75 anos, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias mais, publicado pela Editora José Olympio em 1965. Sua poesia e estilo a consagraram como uma das mais importantes poetisas lusófonas do século XX.  

O talento supera as normas, gramáticos e críticos de sobreaviso em seus tempos.  A gramática é orgânica, o que foi ontem não é hoje e não será amanhã. As gramáticas humanas passam, mudam, mas o talento é atemporal, o talento é quântico e atravessa o espaço/tempo e não está nem aí para as normas temporais. Sobre isso disse Cora, digo, Aninha:  

 “Fui tomar conhecimento de uma gramática, quando meus filhos foram fazer ginásio, trouxeram uma gramática em casa, aí eu peguei, abri, folheei e li, e cheguei à conclusão que se eu tivesse que escrever pela gramática, não escreveria coisa nenhuma, e desisti da gramática.” 

Onze anos depois da primeira edição de Poemas dos Becos de Goiás e Estórias mais, publica, em 1976, Meu Livro de Cordel. Por último, em 1983 lançou Vintém de Cobre – Meias Confissões de Aninha (Ed. Global).

“…Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa/ Eu sou Aninha.” 

“Goiás, minha cidade…/ Eu sou aquela amorosa/ de tuas ruas estreitas,/ curtas,/ indecisas,/ entrando,/ saindo/ uma das outras./ Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa./ Eu sou Aninha./ Eu sou aquela mulher/ que ficou velha,/ esquecida,/ nos teus larguinhos e nos teus becos tristes,/ contando estórias,/ fazendo adivinhação./ Cantando teu passado./ Cantando teu futuro.”  

Eu vivo nas tuas igrejas 
e sobrados 
e telhados 
e paredes. 

Eu sou aquele teu velho muro 
verde de avencas 
onde se debruça 
um antigo jasmineiro, 
cheiroso 
na ruinha pobre e suja. 

Eu sou estas casas 
encostadas 
cochichando umas com as outras. 
Eu sou a ramada 
dessas árvores, 
sem nome e sem valia, 
sem flores e sem frutos, 
de que gostam 
a gente cansada e os pássaros vadios. 

Eu sou o caule 
dessas trepadeiras sem classe, 
nascidas na frincha das pedras: 
Bravias. 
Renitentes. 
Indomáveis. 
Cortadas. 
Maltratadas. 
Pisadas. 
E renascendo. 

Eu sou a dureza desses morros, 
revestidos, 
enflorados, 
lascados a machado, 
lanhados, lacerados. 
Queimados pelo fogo. 
Pastados. 
Calcinados 
e renascidos. 
Minha vida, 
meus sentidos, 
minha estética, 
todas as vibrações 
de minha sensibilidade de mulher, 
têm, aqui, suas raízes. 

Eu sou a menina feia 
da ponte da Lapa. 
Eu sou Aninha. 

Sua primeira faculdade e biblioteca são descritas por ela: 

“As folhinhas antigas de paredes traziam na frente a numeração do dia, semana e tal… No verso trazia as quadrinhas, e eu era louca por aquelas quadrinhas, então, pedia a minha irmã mais velha que lesse pra mim, ela lia umas duas ou três vezes, eu apanhava de cor e incorporava ela aos meus ricos conhecimentos literários” .

Perguntaram a Cora, quem é Cora Coralina? Em tom de récita e poesia, responde:  

“Cora Coralina é a velha musa goiana, Cora Coralina é a cigarra cantadeira de um longo estilo que se chama vida...” 

Dia 20 de agosto, comemora-se o dia do vizinho, o dia do nascimento da poetiza foi escolhido em homenagem a ela e sua Obra.

Certa vez, os moradores da rua de Cora quiseram dar uma festa de aniversário, que ela recusou, e disse que preferia uma comemoração entre vizinhos. Segundo o cineasta Lázaro Ribeiro de Lima.

“Vizinho é mais que parente, pois é o primeiro a saber das coisas que acontecem na vida da gente”. Dizia ela.

Nos conta Edival Loureço, renomado escritor goiano, da cidade Iporá, que “a bibliografia de Cora, que começou com “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais”, de 1965, hoje conta com mais de 15 livros publicados e, segundo sua filha Vicência Bretas Tahan, existe material inédito em seus “caderninhos escolares” para pelo menos mais sete livros. Dezenas de obras biográficas, críticas literárias, teses e dissertações já foram produzidas sobre a autora, no Brasil e no exterior”. O autor do Romance, Naqueles Morros Depois da Chuva, Editora Hedra, vencedor do prêmio Jabuti, 2012, sobre Cora coralina ainda nos diz: “A ascendência de Cora tem lances de ode telúrica. Pelo lado materno, ela descendia do grande bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva — o Anhanguera —, descobridor das minas dos goyazes e, por assim dizer, pai do estado de Goiás. Seu avô, Joaquim Luiz do Couto Brandão, foi proprietário de enormes sesmarias e concessionário das lendárias minas de ouro de Anicuns”.

Cora morreu em 10 de abril de 1985. Sua casa, às margens do Rio Vermelho, com suas janelas azuis, certamente da cor das luzes que sua garganta canta, quando a poesia ela canta, virou museu. Ali estão preservadas as memórias e objetos da poetisa. O fogão à lenha e os tachos de doces, canetas, cadernos e pertences de Aninha, a moça linda da casa da ponte, que depois virou Cora Coralina.  

“Creio numa força imanente/ que vai ligando a família humana/ numa corrente luminosa/ de fraternidade universal”.

Oração do Milho  

Sou a planta humilde dos quintais pequenos e das lavouras pobres. 
Meu grão, perdido por acaso, nasce e cresce na terra descuidada. Ponho folhas e haste e se me ajudares, Senhor, mesmo planta de acaso, solitária, dou espigas e devolvo em muitos grãos, o grão perdido inicial, salvo por milagre, que a terra fecundou. 
Sou a planta primária da lavoura. 
Não me pertence a hierarquia tradicional do trigo. E de mim, não se faz o pão alvo, universal. 
O Justo não me consagrou Pão da Vida, nem lugar me foi dado nos altares. 
Sou apenas o alimento forte e substancial dos que trabalham a terra, onde não vinga o trigo nobre. 
Sou de origem obscura e de ascendência pobre. Alimento de rústicos e animais do jugo. 
Fui o angu pesado e constante do escravo na exaustão do eito. 
Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante. Sou a farinha econômica do proletário. 
Sou a polenta do imigrante e amiga dos que começam a vida em terra estranha. 
Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paióis. 
Sou o cocho abastecido donde rumina o gado. 
Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece. 
Sou o cacarejo alegre das poedeiras à volta dos seus ninhos. 
Sou a pobreza vegetal, agradecida a Vós, Senhor, que me fizeste necessária e humilde 
SOU O MILHO.” 

“Não morre aquele
Que deixou na terra
A melodia de seu cântico
Na música de seus versos.”

Poemas 

Poemas dos Becos de Goiás e Estórias mais (poesia), 1965 (Editora José Olympio); 

Meu Livro de Cordel, (poesia), 1976. 

Contos 

Vintém de Cobre – Meias Confissões de Aninha (poesia), 1983; 

Estórias da Casa Velha da Ponte (contos), 1985. 

Póstumo 

Meninos Verdes (infantil), 1986 (póstumo); 

Tesouro da Casa Velha (poesia), 1996 (póstumo); 

A Moeda de Ouro que o Pato Engoliu (infantil), 1999 (póstumo); 

Vila Boa de Goiás (poesia), 2001 (póstumo); 

O Prato Azul-Pombinho (infantil), 2002 (póstumo).

Nossos textos representam, exclusivamente, as ideias e opiniões dos idealizadores da Poliética.

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