LITERATURA
O FASCÍNIO DO BARROCO NOS SERMÕES DE VIEIRA
Por Nonato Freitas
“O Padre Antônio Vieira – enfatizamos – incendiou as palavras, mesclou o raciocínio mágico e lógico, enlouqueceu a sintaxe de uma nova claridão, tomando as coisas por outro parâmetro de realidade, com estilo atravessado de estalos ou abalos sísmicos na inteligência. E se o nevoeiro foi inventado para melhor compreender o sol, Vieira é um nevoeiro solar. Ou o sol que inventou o seu próprio nevoeiro”. Carlos Nejar.
Como em qualquer grande obra, “Os Sermões” do Padre Antônio Vieira (1608-1697) estão em permanente diálogo com outros textos.
Isto faz com que o leitor, que também é um texto, afie o seu pensamento e amplie sua percepção sobre o universo mágico da literatura.
Thereza da Conceição Aparecida Domingues frisa em seu livro “A Intertextualidade em Vieira” que o texto é o lugar onde se cruzam outros textos. Ela argumenta que no texto “há um diálogo permanente dos elementos sêmicos que se aglutinam, se interpenetram, se desfazem ou se contradizem, segundo as leis únicas de seu funcionamento interno”.
Dentro dessa concepção, em que a dinâmica do texto é intrinsecamente evidente, Vieira caminha o tempo todo nos subterrâneos da intertextualidade, a exemplo do que faz Cervantes, a exemplo do que faz Goethe, a exemplo do que faz Shakespeare, a exemplo, enfim, do que fazem os grandes autores.
O Padre Antônio Vieira é essencialmente barroco. Barroco é visão. Sua linguagem é destinada a tocar as pessoas. O Barroco não é natural. Tudo é construído. As palavras no Barroco são elaboradas para atingir um alvo específico. Quem não tem engenho não pode ser barroco. Isso é coisa mais associada ao Renascimento. Barroco é português e espanhol. É Vieira, Cervantes, Góngora, Quevedo.
É o nosso Gregório de Matos, este genial baiano que soube, como poucos, incorporar em sua poesia toda a engenhosa arquitetura do Barroco, movimento surgido na Itália, no final do século XVI. Caravaggio (1571 – 1610), foi o primeiro grande nome do novo estilo. Os traços de sua revolucionária pintura, priorizando as figuras do povo, como as prostitutas e mendigos, assombraram o mundo. A linguagem do Barroco é lúdica, sua marca peculiar.
Na verdade, o lúdico, o engraçado, o divertido é uma brincadeira, digamos assim, séria, do Barroco, que joga com as palavras para obter sentidos novos.
Houve um tempo em que o Barroco era visto como arte degenerada, simplesmente porque não seguia as regras do Renascimento. Mas isso mudou. Hoje, o Barroco está vivo e é reconhecido e aplaudido como grande expressão de arte literária. Quer exemplo maior que Guimarães Rosa (1908 – 1967), no Brasil?
Outro importante nome do Barroco no Brasil, além de Rosa, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738-1814), e Gregório de Matos (1636 -1696), é Autran Dourado (1926 – 1012). Em sua notável obra Ópera dos Mortos (1976), Dourado faz uso deliberado da ambiguidade, característica inconfundível do Barroco. Aliás, o processo construtivo dessa monumemtal obra é todo voltado para o Barroco. Nela, o lúdico, o olhar e a imaginação são peças fundamentais utilizadas por Autran Dourado, também autor de “Uma Poética do Romance: Matéria de Carpintaria”.
Vale ressaltar que a ambiguidade é algo importante na narrativa. Afinal, uma coisa dita na obra pode ser ou pode não ser aquilo que está escrito. O leitor é que vai tirar suas conclusões. A literatura mostra as coisas de forma ambígua, obrigando a que o leitor suprima as dúvidas por meio de permanente exercitar do pensamento. Só assim, dialogando o tempo todo com a obra, ele poderá entender o seu conteúdo. A literatura também não quer provar uma verdade ou mostrar ao leitor um conceito específico sobre algo. O que o discurso precisa ter é, além do racionalismo, a arte do sentimento. Nisso Vieira é um mestre. No Sermão da Sexagésima, no Sermão de Santo Antônio aos Peixes, no Sermão de Quarta-Feira de Cinzas, enfim, em todos os seus sermões, o engenho desse implacável Cervantes (1547 — 1616) português nos abre as mentes obscuras e nos faz enxergar que somos pó e para o pó caminhamos todos.
Vieira, como toda a obra barroca, opera como a figura de uma elipse, de uma espiral, girando e ampliando o sentido das coisas. Ou seja, o Barroco não caminha. Em momento algum Vieira perde o contato com o ponto fulcral do assunto abordado. No entanto, ele consegue extrair, constantemente, sentidos novos de um mesmo tema. É o perspectivismo que explode num torvelinho de palavras cheias de aliterações e assonâncias, criando no texto uma harmonia sonora que provoca no leitor uma grande emoção.
No Segundo Sermão de Quarta-Feira de Cinzas, Vieira nos ensina o quanto somos pequenos. Com essa exuberante linguagem do Barroco, o autor vai criando palavras que penetram na mente do leitor como trovoadas. De outras vezes as palavras chegam mansas como uma neblina que cai suavemente do céu. Esta magia refrigera nosso espírito e tem o poder de plenificar a vida. Eis este vigoroso exemplo:
“Três coisas (dividamos o discurso para que declaremos e apartemos bem este ponto), três coisas fazem duvidosa, perigosa, e terrível a morte: Ser uma, ser incerta, e ser momentânea. Estas são as três cabeças horrendas deste Cérbero, estas são as três gargantas por onde o inferno engole o mundo. E de todas estas dificuldades e perigos se livra seguramente só quem? Quem não guarda a morte para a morte, quem acaba a vida antes de morrer, quem se resolve a ser pó antes de ser pó: Pulvis es”.
As palavras de Vieira no Segundo Sermão da Quarta-Feira de Cinzas fazem uma profunda reflexão sobre a vida e a morte, tema sobre o qual ele discerne com impressionante clareza e absoluta riqueza intelectual. Vejamos como as palavras brotam de sua mente privilegiada:
“Foi notar S. Judas Tadeu naquela sua admirável epístola, que as árvores morrem duas vezes: Arbores autumnales, infrutuosae, bis mortuae. A primeira vez, morrem as árvores em pé, a segunda deitadas; a primeira, quando se secam; a segunda, quando caem. Platão disse que os homens são árvores às avessas, e eu acrescento que, se morrerem como as árvores, serão homens às direitas. Na árvore, enquanto lhe dura a vida, ou a verdura, tudo são galas, tudo pompa, tudo novidades; morre finalmente a árvore com o tempo a primeira vez, e daquele corpo tão formoso e vário, que vestiam as folhas, que guarneciam as flores, que enriqueciam os frutos, não se vê mais que um cadáver seco, triste e destroncado. Neste despojo de tudo o que tinha sido, presa ainda pelas raízes, e sustentando-se na terra, mas não da terra, espera a árvore em pé a última caída, e esta é a segunda morte, com que de todo acaba. Assim deve acabar antes de acabar, quem quer acabar bem”.
Nesta belíssima metáfora, Vieira, sem se arredar do frondoso estilo barroco, vai ensinando que o homem precisa se desprender das vaidades e dos tesouros ilusórios que a vida oferece. Precisa, enfim, se livrar da perigosa ribalta. Nas suas sábias palavras, quem morre a primeira vez, como a árvore que perdeu os frutos, está preparado para a segunda morte. “Quantas primaveras têm passado por nós, quantos verões, e quantos outonos, e pode ser que com menos fruto que folhas e flores”, reflete o pregador.
Ao analisar os sermões de Vieira, Thereza Conceição observa que o escritor português tinha um discurso “astucioso”, que causava uma “polêmica velada”. Ela enfatiza:
“Eis a forma mais sutil de ataque e defesa empregada na arte da palavra. O discurso é emitido para um aparente fim e, na verdade, é endereçado a um interlocutor não mencionado mas sempre presente na fala do autor. É uma verdadeira luta verbal. O agredido nem mesmo pode revidar, porque o agressor ‘finge’ nem perceber sua existência. É uma luta em que vence a astúcia e a contenção. Nada é declarado mas tudo é dito”.
Vieira é um mestre na arte de brincar com as palavras. No seu sermão da Quarta- Feira de Cinzas, embora esteja falando de uma coisa muita séria, ele usa o tempo todo toda a riqueza lúdica para entreter, digamos assim, o leitor, que acaba se deliciando com toda a estrutura arquitetônica do texto. Confiramos:
“Se vivermos como os que vivem e como os que vemos morrer, certo é que sim. E contudo, nem Davi, nem Jó, com tanto cabedal de virtudes, com tantos tesouros de merecimento, e o que é mais, com tantos testemunhos do Céu, tiveram confiança para que os tomasse de repente o momento da morte: ambos pediram tempo a Deus para meter tempo entre a morte e a vida”.
Aqui, as aliterações e assonâncias se imbricam de tal forma neste jogo de palavras que esta brincadeira séria de Vieira, com a abundância de musicalidade que ostenta, prende e emociona o leitor do começo ao fim do texto. Vieira reconhece a importância desse jogo. No seu livro O Lúdico e As Projeções do Mundo Barroco, Affonso Ávila transcreve, em forma de epígrafe, o seguinte fragmento, tirado do Sermão Quinto a S. Francisco Xavier – Jogo”:
“O pintarem bem os dados, ou as cartas, não está na mão do jogador, mas se ele é sábio na arte, está na sua mão o usar bem do jogo”.
Para finalizar, quero confessar que até hoje não entendi a razão pela qual o mestre Antônio Cândido, um dos mais celebrados e lúcidos críticos literários do Brasil, decretou a morte do Barroco em nosso país. Por que, afinal, a lupa de suas pesquisas nunca se deteve em Gregório de Matos, Viera e outros expoentes do Barroco no Brasil? Ainda bem que a resposta foi dada por quem entendia profundamente do assunto. Refiro-me a Haroldo de Campos (1929 – 2003). Em seu livro “O Sequestro do Barroco”, o respeitado crítico literário faz um importante e minucioso estudo a respeito do tema, deixando Antonio Cândido aturdido. Finalmente, após a repercussão da obra escrita por Haroldo de Campos, Cândido andou reformulando seu conceito sobre a importância da escola barroca no Brasil.
Em todos os seus sermões, notadamente no Sermão da Sexagésima e no Segundo Sermão de Quarta-Feira de Cinzas, O Padre Antônio Vieira, como confirmam os estudos, articula suas ideias com argumentações altamente inteligentes. Nos seus textos, ele sempre vai trazendo mais uma pessoa para o palco, aumentando, desta forma, o ponto de vista. E são muitos os pontos de vistas que ele vai criando à medida que aborda um mesmo assunto. O que fez ele no Sermão da Sexagésima? Pegou a parábola bíblica em que Cristo fala da boa semeadura e a partir daí, sem abandonar o ponto fulcral do tema, vai ampliando, de forma magistral, o sentido das coisas.
Vamos conferir o que diz Antônio J. Saraiva em sua obra O Discurso Engenhoso:
“Na ideia de Vieira, o Sermão da Sexagésima era, sem dúvida, não só uma exposição doutrinária, como também um exemplo de boa pregação. Trata-se, de fato, de uma peça notável pela bela simplicidade, pela elegância austera e funcional que contrasta com a multiplicação de imagens sensuais e brilhantes, mas puramente ornamentais, características de numerosos sermões portugueses e espanhóis de mesma época. Justifica-se plenamente a admiração que o Sermão da Sexagésima suscitou entre os adversários da arte barroca, tais como o Padre Isla”.
No Segundo Sermão da Quarta-Feira de Cinzas, o assunto escolhido por Vieira é a morte. E sobre este único assunto ele vai tecendo, com espantoso engenho, o fio propulsor de sua obra. Em cada palavra, em cada frase, em cada parágrafo, Vieira vai ampliando de forma tal os seus pontos de vistas, num vertiginoso jogo de ideias, que, ao contrário de sufocar o leitor, germina nele sementes de sabedoria almagamadas com emoção. Vejamos o que diz ele:
“Mas Deus que nos fez para a eternidade, e não para o tempo, para a verdade e não para a vaidade, deixou o nascer à natureza, e o morrer à eleição. No nascer, em que todos somos iguais, não pode haver erro, e por isso basta nascer uma vez; no morrer, em que o erro e o acerto importa tudo, e há de durar para sempre, era justo que o homem pudesse morrer duas vezes, para eleger a morte que mais quisesse, e para aprender, morrendo, a saber morrer. Nenhuma coisa se faz bem pela primeira vez, quanto mais a maior de todas, que é morrer bem”.
Com este fragmento acima, extraído do Segundo Sermão da Quarta-Feira de Cinzas, dou por encerrado este ensaio, com a neblina enorme da dúvida fustigando a minha mente. Na fantasmagórica e desembestada corrida atrás de Avatare’s, Crepúsculo’s e Harry Potter’s, quantas pessoas pararam para ler um sermão de Vieira? Quantas? Quantas, sequer, ouviram falar em seu nome? É uma pena! Afinal de contas, entre a leitura dos verdadeiros clássicos e as clássicas futilidades de plantão, a esmagadora maioria prefere as vassouras voadoras.
Vejam o que o poeta Carlos Nejar escreveu a respeito de Vieira, em sua fantástica História da Literatura Brasileira – Da Carta de Caminha aos Contemporâneos:
“Penso que a grandeza da linguagem de Vieira está no choque entre a tese e a antítese, para a síntese, a utopia, ou a loucura de ver a história do futuro. Sua natureza não é confundir, é trabalhar a luz, até nos exageros, para que vislumbre melhor todos os recantos de treva, com a arte de desplumar, com evidência solar, a organização das sombras, donde o Padre Antônio Vieira não opera somente uma ação verbal de descoberta, alcança a descoberta imperiosa e deslumbradora da ação verbal. Isto é, a palavra que se faz ato. E a alma que se torna corpo”.
Não foi por mera gentileza que Fernando Pessoa levantou-se de sua grandeza e disse para o mundo que o Padre Antônio Vieira era o imperador da língua portuguesa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
SARAIVA, Antônio J. O Discurso Engenhoso: Estudos sobre Viera e outros escritores barrocos. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 113-124.
MENDES, Margarida. A Oratória Barroca de Vieira. Lisboa: Editorial Caminho, 1989, p. 303-309 e p. 339-346.
ÁVILA, Affonso. O Lúdico e As Projeções do Mundo Barroco. 2.ed.rev. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 15-38.
HATZFELD, Helmut. Estudos sobre o Barroco. Tradução de Célia Berrettini, São Paulo: Perspectiva/EDUSP, 1988, p. 85-103.
DOMINGUES, Thereza da Conceição Apparecida. O Múltiplo Vieira: Estudo dos Sermões Indigenistas. São Paulo: Annablume, 2001, p.35-87 e p.97-99.
NEJAR, Carlos. História da Literatura Brasileira: Da Carta de Caminha aos Contemporâneos. São Paulo.: Leya, 2011, p. 67.
Nonato Freitas – Jornalista, escritor e poeta. É também bacharel em Letras e Literatura Portuguesa, além de ensaísta, pesquisador cultural e palestrante. Escreveu com José Américo de Almeida um prefácio para a Antologia Ilustrada dos Cantadores, obra essencial de pesquisas no campo da poética dos repentistas nordestinos. É coautor de Linguagens e Brasilidade, antologias lançadas pelo Coletivo de Poetas. Nonato Freitas é coautor de produção e roteiro do documentário “O Homem que Viu Zé Limeira”, produzido pelaTV Senado.